O Butão é um país que se abriu relativamente tarde para o mundo. Ao contrário do que aconteceu com seus vizinhos Índia e Nepal, invadidos por um turismo barato que causou –
e ainda causa – um grande impacto ambiental e social, o governo procurou controlar o número de turistas que entram no país. Algumas atividades óbvias em outros países que possuem cordilheiras nevadas – como fazer alpinismo ou rafting nos rios – não são permitidas no Butão. A proposta é evitar que os recursos naturais sejam degradados ou até mesmo ultrajados.
Chegamos em Paro durante o Tsechu, festival que dura cerca de cinco dias e culmina na lua cheia. O evento atrai pessoas de várias regiões do país. Vestindo máscaras coloridas, diferente grupos dançam durante horas para celebrar a vida de Guru Rimpoche ou Buda Padmasambava, um iluminado que, a caminho do Tibete, trouxe o budismo da Índia ao Butão no século VIII.
Os dançarinos portando máscaras coloridas das divindades dançam sem parar. Com movimentos que nem sempre fazem sentido para os ocidentais, rodopiam, movem suas cabeças para cima e para baixo e correm como se perseguidos por um demônio. Os monges tocam instrumentos musicais utilizados nos rituais religiosos, como tambores, sinos e cornetas.
Os butaneses acreditam que as danças com máscaras atenuam ou diminuem o carma das pessoas. A mais expressiva é a Dança das Divindades Aterrorizantes, chamada Tungam. Nela, as divindades mascaradas prendem os maus espíritos e, com uma faca, eliminam esses seres que trazem sofrimento aos seres humanos. A finalidade do ritual é contribuir com a felicidade do povo, motivo que nos trouxe ao país.
Há mais de quatro décadas, o Reino do Butão tem desafiado a noção convencional e materialista de desenvolvimento humano com o conceito da Felicidade Interna Bruta (FIB). Essa noção surgiu nos anos 1970 quando o então rei do Butão Jigme Singye Wangchuck respondeu a um jornalista que o progresso de seu país seria medido pela felicidade do povo e não pelo nível de seu consumo. Esse era nosso verdadeiro interesse: buscar compreender um pouco mais como funciona o conceito da Felicidade Interna Bruta.
O conceito ainda gera certa confusão. Muitos questionam se as pessoas no Butão são verdadeiramente felizes. Outros perguntam como um país “não desenvolvido” pode ser feliz. Mas a questão principal está longe desse embate.
Ainda que o pequeno país do Himalaia, com uma população que alcança apenas 750 mil habitantes, não tenha os problemas sociais e ambientais de seus gigantescos vizinhos, como China e Índia, os desafios sempre existem.
O FIB, na verdade, é um índice de desenvolvimento que busca trazer dados para orientar o governo a desenhar políticas que possam garantir a felicidade ou o bem-estar da população. Pautado por valores budistas e espirituais, o índice está baseado em quatro pilares, que são 1) desenvolvimento socioeconômico sustentável e equitativo, 2) conservação ambiental, 3) preservação e promoção do patrimônio cultural e 4) boa governança. Como desdobramento, existem outros nove domínios e dúzias de indicadores que envolvem esferas jamais consideradas pelos índices de desenvolvimento tradicional como PIB ou IDH.
A avaliação do FIB questiona, por exemplo, quantas vezes na semana a pessoa teve sentimentos negativos como inveja e raiva ou quantas vezes teve sentimentos positivos como compaixão e perdão. O índice ainda leva em conta a “convivência na comunidade” e o “tempo passado na natureza”, fatores que, para o butanês, são considerados importantes para ser feliz.
Infelizmente, dados do Relatório de 2015 mostram que hoje há um número maior de pessoas que se considera infeliz no Butão, em comparação aos dados do Relatório de 2010. Nos últimos anos, o Butão tem experimentado uma intensificação da migração do campo com grande impacto na área urbana. O aumento do lixo e a necessidade de repensar o transporte são apenas algumas das consequências. Certamente, essa mudança poderá trazer também impactos na produção de alimentos do país.
Para entender essas questões seguimos um percurso desenhado pelo monge Saamdu Chetri, diretor do Gross National Happiness Centre (Centro da Felicidade Interna Bruta), idealizado para introduzir o conceito do FIB a estudiosos que chegam de outros países. Além de visitar alguns dos pontos importantes da cidade, nosso roteiro inclui a visita ao tradicional Royal Thimphu College, conversas com profissionais de educação e encontros com outros professores inspiradores, como o indiano Satish Kumar, fundador do Schumacher College, na Inglaterra.
Reverenciado pela caminhada que fez nos anos 1960 da Índia à Europa, Satish explica que nosso relacionamento com o planeta Terra acontece de duas diferentes maneiras. “Podemos agir como turistas de passagem e olhar a Terra como recursos, bens e serviços para o nosso uso, prazer ou conforto. Ou podemos agir como peregrinos e tratar o planeta com reverência e agradecimento”, diz ele.
Na analogia de Satish, o turista é aquele que entende que as riquezas naturais estão sempre disponíveis para o uso do humanos. O peregrino, por outro lado, percebe o planeta como ser sagrado e reconhece o valor intrínseco da vida. “O turista é aquele que cria expectativas e se decepciona quando as coisas não saem exatamente da forma planejada. Já o peregrino aceita os acontecimentos da forma como eles são”, afirma.
As palavras de Satish dão o tom da viagem e é quase impossível não entrar em um clima de leveza. A espiritualidade e valores como a compaixão formam a base do FIB. Dessa forma, nossos dias passam rápido, repletos com palestras encantadoras e sessões de meditações.
Outro momento de inspiração é o encontro com Kalinca Susin, uma brasileira que vive no Butão há seis anos. Professora no Royal College of Thimphu, Kalinca tornou-se uma nobre embaixadora do Butão, traduzindo literalmente para o português a cultura do país e algumas especificidades do FIB.
Viajar pelo Butão requer tempo e paciência. Por estradas estreitas – mas que já estiveram piores no passado – leva-se horas para realizar qualquer deslocamento rodoviário. Para conhecer o dzong da cidade, uma visita a Punakha, a 90 km da capital Thimphu, é fundamental. O dzong de Punakha é o segundo mais antigo do país e foi concluído em 1638.
Os dzongs são enormes fortalezas que dominam as capitais dos 20 distritos do Butão. São a melhor representação da arquitetura do reino no Himalaia. Lá dentro, reúnem-se os dois mais importantes poderes do Butão: a autoridade espiritual e a administração pública.
Punakha traz outra curiosidade. Entre um vilarejo e outro, casas com pinturas de pênis nas paredes chamam nossa atenção. Não demora muito para que as ilustrações, consideradas como auspiciosas, comecem a gerar perguntas.
Os falos são figuras esotéricas que simbolizam fertilidade e bonança. A origem da tradição é ainda discutida. Alguns dizem que a crença está ligada ao monastério Chimi Lhakhang, construído em Punakha em homenagem ao Lama Drukpa Kunley, conhecido por suas formas nada tradicionais de ensino. Outros estudiosos dizem que o costume está relacionado ao Bon, religião local nativa que existia no Butão antes da chegada do budismo.
Muitos butaneses usam a figura do pênis em um colar como amuleto de boa sorte. Há quem acredite que as pinturas dos falos tenham o poder de espantar o azar e o mal olhado. Quando alguém tem uma casa bonita, é aconselhável desenhar o órgão masculino logo na parede de entrada.
Fábulas e crenças não faltam no Butão. Uma das mais conhecidas é a luta do Guru Rimpoche contra os demônios que tentavam impedir a chegada do budismo ao Butão. Conta a lenda que Guru Rimpoche teria voado nas costas de um tigre para vencer a batalha. Ao final da disputa, o tigre teria se abrigado no topo de uma montanha, em um local conhecido como Taktsang.
Taktsang ou o Ninho do Tigre é um dos lugares mais fantásticos do país. Para chegar até o templo, é preciso realizar uma caminhada de 900 metros de desnível e de aproximadamente seis horas de subida. Os mais preguiçosos ou sem preparo físico têm a opção de subir no lombo de um burrico. O trajeto a pé, no entanto, representa uma grande oportunidade para fazer reflexões sobre a viagem, a vida, o budismo e a felicidade.